"Eu fiz o que achei certo!"
"E eu também."
"Mas você morreu, Lysha!"
"E você se perdeu, Aedan."
O vilarejo de Thurn ficava longe de qualquer estrada importante, cercado por pinheiros, trilhas quase apagadas e um ar de quem foi esquecido até pelos deuses. Ali, o tempo andava mais devagar. O sino da igreja tocava toda manhã, e os dias se confundiam entre cuidar das plantações, esquentar água, trocar pão por ervas.
Aedan e Lysha Kirel cresceram nesse lugar esquecido. Filhos de um pastor bêbado e de uma mãe que morreu jovem, eles cuidaram um do outro como se fossem tudo o que restava do mundo. E eram. Lysha era a mais velha por dois invernos, e a mais viva por muitos. Tinha um dom estranho para fazer as pessoas falarem com ela — até os velhos mais duros de Thurn se derretiam diante de sua presença tranquila. Já Aedan era mais reservado. Não era mau, só... evitava as palavras como se elas pudessem morder.
A Primeira Trombeta era nome que ecoava com peso nos ventos, mesmo ali. Alguns viam nela justiça divina; outros, um massacre vestido de pureza. Quando um homem chegou ensanguentado em Thurn, gritando que o vilarejo vizinho fora queimado — mulheres, crianças, tudo —, as estruturas frágeis da paz começaram a rachar. Ele dizia que “eles” estavam vindo, “varrendo o mundo de hereges”.
Horas depois, mais chegaram: uma menina de oito anos sem os pais, um ferreiro sem a mão direita, uma mulher arrastando o corpo do irmão. Eram sobreviventes. Depois outros cinco chegaram, depois mais dez. A aldeia se dividiu como um cisco em água. Uns queriam correr. Outros se armar. Uns exigiam os nomes dos refugiados. Outros se ajoelharam e ofereceram orações às cinzas.
Lysha abrigou três deles. Sem dizer a ninguém, nem mesmo Aedan. Quando ele descobriu, era tarde demais: entrou correndo em sua casa, ofegante, preparado para fugir junto de sua irmã — e viu os forasteiros deitados em sua sala. Um homem com uma lança quebrada no ombro. Uma mulher com olhos esbugalhados que não dormia há dias. E um garoto. Sempre tem um garoto.
Ele se virou pra irmã. “Você tá maluca?!”
Ela não respondeu de imediato. Estava limpando o sangue de um dos feridos com uma expressão serena, como se costurasse a barra de um vestido.
“Eles só querem viver, Aedan.”
“Eles vão matar a gente!”
“Talvez. Mas eles não são monstros.”
“Você não sabe disso!”
“E você sabe?”
Aedan queria denunciá-los. Queria gritar pra todo mundo. Mas não gritou. Porque Lysha, a irmã mais velha, sempre o confortou quando menores, e agora não era diferente:
“Confia em mim só dessa vez.”
Ele confiou.
Horas haviam se passado, e a Primeira Trombeta ainda não havia chegado — embora sua sombra já pairasse sobre Thurn como uma nuvem carregada. Era mencionada por cada nova testemunha que chegava ao vilarejo: olhos vazios, roupas queimadas, histórias ditas como preces. Estavam próximos.
Enquanto Lysha cuidava dos feridos em casa, Aedan seguiu até a taverna, onde as discussões sobre o destino dos refugiados ferviam. Vozes se sobrepunham, copos se quebravam. Um homem — velho, amargo, com os olhos fundos de medo — foi o primeiro a gritar:
"Denunciarei não só os refugiados... mas qualquer um que os estiver acobertando!"
O silêncio que se seguiu foi mais violento que a ameaça. Olhares cortaram o salão como lâminas. Alguns se levantaram para brigar. Outros, como Aedan, correram. Não pela justiça. Pela sobrevivência.
Mas as palavras — sempre mais rápidas que as pernas — chegaram primeiro.
Quando Aedan empurrou a porta de casa, foi recebido por um silêncio que não combinava com o cheiro de sangue.
A cozinha parecia menor. As janelas, mais fechadas. O ar, espesso. Ele ouviu um murmúrio — um lamento engasgado — e correu.
Lysha estava no chão, uma poça se abrindo ao redor do pescoço. Os olhos ainda abertos, o rosto virado na direção da escada. Como se tivesse tentado subir. Como se ainda procurasse por ele.
A mulher encostada à parede tremia. O garoto chorava em silêncio, o rosto afundado nos joelhos. E o homem... o homem segurava uma faca. Ela ainda pingava.
"Eu não queria fazer isso!", disse ele, com a voz de quem se afoga.
"Ela... ela ia sair. Ia contar. Era só pra assustar, eu juro. Era pra... pra ela calar a boca..."
Talvez tenha dito mais. Talvez tenha pedido perdão.
Aedan não ouviu.
Ele caiu de joelhos ao lado da irmã. Tocou o rosto dela com mãos trêmulas, sujas de sangue que ainda não tinham esfriado. Chorou. Chorou até engasgar.
E então... parou de chorar.
Levantou-se. Com os olhos baixos.
Fez o que tinha que fazer.
A mulher foi a primeira. O garoto... o garoto tentou correr. Não chegou à porta. O homem, por último. A faca que ele empunhava caiu de sua mão antes que pudesse usá-la de novo.
Quando a Primeira Trombeta chegou, encontrou Aedan ajoelhado à frente da casa. Os olhos vazios. O rosto coberto de lágrimas e sangue.
À sua frente, quatro corpos:
Lysha, deitada com cuidado, as mãos postas sobre o peito. Um pano cobrindo o corte em seu pescoço.
E os outros três... empilhados, como trapos.
"Não me resta mais nada," disse Aedan, sem se levantar.
"Eis aqui os hereges. Eis aqui uma alma pura. E eis um voluntário para a sua causa."
Até hoje, Aedan evita pensar se seus atos naquele dia foram considerados por pura pena e empatia ou real estima de sua habilidade.
A iniciação durou sete dias. Sete julgamentos.
Depois disso, foi considerado puro.
O frio de Vestenholm era diferente do de Thurn. Lá, o vento uivava, mordia, e entrava pelas frestas como um ladrão faminto. Mas não era o frio que acordava Aedan de seus pesadelos — era a ausência de som. Uma calma tão morta quanto o olhar de um corpo recém-carbonizado.
Fazia semanas que ele não dormia direito. Toda vez que fechava os olhos, voltava àquela casa. O chão manchado. Os olhos de Lysha. O cheiro de ferro.
Mas naquela noite... algo foi diferente.
Ele havia sido enviado para vigiar um pequeno vilarejo costeiro — suspeitas de paganismo, de rituais esquecidos nas pedras à beira-mar. Não encontrou nada. Nem velas, nem marcas no chão. Só um silêncio antigo demais para aquele lugar.
Dormiu num celeiro vazio, com a capa sobre o corpo e a espada ao lado, como sempre. E acordou com a sensação de que alguém o observava. Quando abriu os olhos, não havia ninguém ali.
Mas a porta do celeiro — que ele jurava ter trancado — estava entreaberta.
Aedan se levantou devagar, mão na empunhadura. Caminhou até a entrada, o ar frio cortando sua pele.
Lá fora, entre os cavalos quietos e a névoa baixa, alguém estava em pé.
Era ela.
Não como estava no chão de Thurn, não como ele a encontrou — mas como ele lembrava nos dias bons. Com a trança torta, o vestido azul-claro, e aquela expressão que sempre parecia saber mais do que dizia.
Lysha.
Por um instante, Aedan não respirou.
“Lysha...?”, a voz saiu quebrada. “...sou eu. É você?”
Ela não respondeu. Apenas o olhou. Com ternura. Com dor. Com... saudade.
Aedan deu um passo à frente, e o chão pareceu ceder sob seus pés.
“Eu não consegui...” disse ele. “Eu... eu tava tentando voltar, eu juro...”
Ela ergueu a mão. Não como quem repreende. Mas como quem segura o vento antes que ele quebre as folhas.
Aedan parou.
Ela se aproximou, e os pés dela não tocavam o chão. Um verdadeiro espectro avermelhado, mas que de alguma forma ainda nutria toda a compaixão e pureza que Lysha carregou em vida.
“Você ainda me escuta?”, ele sussurrou.
Lysha assentiu, lentamente.
“Então... me diz. Me diz que me perdoa. Me diz que ainda... que ainda me vê como seu irmão.”
"Não há o que ser perdoado, Aedan. Você sempre será meu irmão" Ela finalmente respondia de volta.
"É claro que há! Se eu fosse mais rápido!" Ele gritava, caindo de joelhos.
"E o que você faria? Mataria aqueles que eu quis proteger?" Ela respondia, sempre calmamente. "Não seja bobo, Aedan. Se pudesse voltar no tempo, teria escolhido os proteger da mesma forma que fiz no passado."
Conforme ela terminava de falar, seu espectro sumia aos poucos, desaparecendo mesmo enquanto Aedan segurava sua mão, novamente deixando o guerreiro sozinho, envolto no que ele julga ser sua fé.
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